O trânsito precisa ser um lugar
É visível: nos últimos 15 anos, o trânsito mudou. Nesse período, a frota gaúcha mais do que dobrou. Hoje, são mais de 5 milhões de veículos circulando e mais de 4 milhões de condutores. O trânsito tornou-se mais do que complexo: ganhou status de ciência e vários de seus ramos tornaram-se especializações universitárias. Em seu aspecto mais violento, o trânsito tornou-se também uma calamidade pública, reconhecida pela Organização das Nações Unidas como epidemia mundial.
Espelho da sociedade em que está inserido, o trânsito de hoje reflete toda a complexidade da sociedade moderna e das relações entre as pessoas. Em diversos aspectos, o Código de Trânsito Brasileiro antecipou-se às mudanças sociais que se refletiram no espaço de convívio a que chamamos trânsito. Ontem, completaram-se 15 anos de sua vigência, trazendo vários debates e algumas certezas.
Dentre as certezas, a principal é a de que, nesse período, o trânsito ganhou espaço de discussão, saiu das sombras e está sendo dissecado à luz do dia, mostrando suas fragilidades e seus problemas, mas também suas potencialidades e possibilidades de recuperação. As questões de trânsito são pauta obrigatória de qualquer órgão de imprensa responsável, de qualquer governo sério, de qualquer educador comprometido. Tema de nível planetário – do ponto de vista ecológico, sociológico, econômico –, o trânsito bebe das fontes de diversas áreas do conhecimento.
O etnólogo francês Marc Augé, por exemplo, introduz o importante conceito de não lugar, espaço que se opõe ao lar, ao espaço personalizado, privado. O não lugar é por definição um espaço público de passagem, de contatos breves e epidérmicos, tal como shoppings e estações, em que o ser humano se sente ainda mais só, por se perceber um ninguém junto a muitos outros seres humanos igualmente indiferenciados. Ele sente necessidade, em espaços assim, de impor sua individualidade, valorizando símbolos como cartões de crédito ou a carteira de motorista. Daí podemos intuir que, quanto mais impessoal e anódino for o espaço público, mais os seres humanos que nele circulam tenderão a comportamentos fora do padrão – seja pichando uma parede, seja desrespeitando leis de trânsito.
Conhecimentos como esse nos autorizam a avançar mudanças. Se o nascimento do CTB, há 15 anos, abriu espaço para questionamentos e muitos debates, hoje vivemos a época da consolidação das normas, estas consideradas como o social resolvido, a problemática já solucionada e cristalizada. O desafio está, porém, em aplicá-las da forma mais adequada aos seres humanos que somos – caso contrário, elas serão letra morta ou, pior, instrumentos de domínio, a exigir constante controle dos corações e das mentes. Precisamos trabalhar o trânsito com a amplitude que lhe é própria, humanizando-o, tornando-o inclusivo, possibilitando protagonismo e expansão humana de todos e de cada um. No dia em que o conseguirmos, infrações e os consequentes acidentes não serão mais do que histórias de um passado que ninguém gostará de recordar.
O Autor é Diretor técnico do Detran/RS e Conselheiro do CETRAN/RS